06 Julho 2023
Entrevista exclusiva concedida pelo cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito emérito da Congregação para a Doutrina da Fé, ao vaticanista Michael Haynes. O prelado respondeu a perguntas do site LifeSiteNews sobre a importância da nova nomeação do Papa Francisco para o Dicastério para a Doutrina da Fé.
Segue-se uma entrevista que o cardeal Gerhard Ludwig Müller concedeu ao LifeSiteNews via e-mail, respondendo à notícia da nomeação de dom Víctor Manuel Fernández, arcebispo de La Plata, como novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé.
O site LifeSiteNews noticiou o anúncio em 1º de julho, enfatizando a posição controversa de dom Víctor Manuel Fernández sobre uma série de questões, como o recebimento da Sagrada Comunhão pelos divorciados recasados, a promoção da exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia e seus escritos sobre sexualidade.
Gerhard Ludwig Müller foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (hoje, Dicastério) de 2012 a 2017, quando o Papa Francisco o substituiu pelo cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer.
A entrevista é de Michael Haynes, publicada por LifeSiteNews, 04-07-2023. A tradução é de Messainlatino, 05-07-2023.
Eminência, o senhor já definiu “heréticas” algumas declarações de dom Vítor Manuel Fernández. Que perigo ele representa agora como chefe do Dicastério para a Doutrina da Fé, especialmente quando se considera que ele escreveu e promoveu a exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia para abrir a Comunhão aos divorciados e "recasados"?
A decisão sobre quem se torna Prefeito do principal Dicastério que assiste diretamente o Romano Pontífice em seu magistério universal pertence somente ao Santo Padre. Ele também deve responder em consciência diante de Cristo, Senhor e Cabeça de sua Igreja. Isso não exclui a preocupação de muitos Bispos, sacerdotes e fiéis em todo o mundo. Eles têm o direito de expressar livremente suas preocupações (Constituição Lumen Gentium, 37).
A opinião, por mim criticada na época, de que qualquer Diocese poderia se tornar a sede do sucessor de Pedro já é diretamente qualificada pelos Padres do Concílio Vaticano I como uma contradição herética à fé revelada no 2º cânon da constituição Pastor aeternus (Denzinger-Hünermann, 3058). O conceito de que "o Romano Pontífice tem poder pleno, supremo e universal sobre ela [toda a Igreja]" (Constituição Lumen gentium, 22), ou seja, a plenitudo potestatis, nada tem a ver com o comando ilimitado de potentados seculares que se referem a um poder superior.
Também a Igreja do Deus Trino não precisa de novos alicerces ou de modernizações, como se tivesse se tornado uma casa em ruínas e como se homens fracos pudessem superar o mestre construtor divino. Já está historicamente fundada em Cristo de uma vez por todas e perfeitamente concebida em sua doutrina, constituição e liturgia no desígnio de salvação de Deus.
No Espírito Santo, serve continuamente aos homens como sacramento da salvação do mundo. O seu ensinamento não é um programa a ser aperfeiçoado e atualizado pelos homens, mas o testemunho fiel e completo da revelação escatológica de Deus em seu Filho encarnado "cheio de graça e de verdade" (Jo 1, 14).
A função do Dicastério, a serviço do magistério papal, é mostrar como a doutrina da fé seja biblicamente fundamentada, como tenha se desenvolveu na história do dogma e como seu conteúdo é expresso com autoridade pelo magistério. A obediência religiosa que todos os católicos devem ao episcopado universal, e em particular ao Papa, refere-se apenas às verdades sobrenaturais da doutrina da fé e da moral (incluídas as verdades naturais da ontologia, da epistemologia e da ética, que são os pressupostos da cognoscibilidade da Palavra de Deus na nossa mente humana).
O papa e os bispos não podem pretender obediência por suas opiniões particulares, e certamente não por ensinamentos e ações que contradiriam a revelação e a lei moral natural. Isso já foi declarado em 1875 pelos bispos alemães contra a interpretação errônea dos ensinamentos do Concílio Vaticano I por Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, chanceler do Reich. O Papa Pio IX concordava expressamente (Denzinger-Hünermann, 3115; 3117).
O Papa e os Bispos estão vinculados à Sagrada Escritura e à Tradição Apostólica e não são fontes de uma revelação suplementar ou de uma revelação que se supõe deva ser adaptada ao estado atual da ciência.
O Romano Pontífice e os Bispos, conscientes do seu ofício e da gravidade do assunto, prestam a sua vigilante obra usando os meios apropriados, mas não recebem nenhuma nova revelação pública como pertencente ao depósito divino da fé (Constituição Lumen Gentium, 25).
Dom Víctor Manuel Fernández também defendeu que as relações sexuais entre casais coabitantes nem sempre são pecaminosas. Que perigo representa para ele manter tal posição no Dicastério para a Doutrina da Fé?
Invocando a vontade originária do Criador, o próprio Jesus definiu o divórcio e o "novo casamento" como adultério nas discussões com os fariseus de coração duro, que apelavam para as realidades da vida de seus contemporâneos e para a incapacidade de atender os mandamentos de Deus (Mt 19, 9).
Todo pecado grave nos exclui do Reino de Deus até haver arrependimento e ser perdoado (1 Cor. 6,10). A misericórdia de Deus consiste em reconciliar a si o pecador arrependido por meio de Jesus Cristo. De modo algum podemos justificar-nos com referência à nossa fragilidade, para persistir no pecado, isto é, em fatal contradição com a santa e santificadora vontade de Deus.
Bem diferente é o tratamento pastoralmente sensível de muitas pessoas cujos casamentos e cujas famílias foram danificadas ou desfeitas por culpa própria ou de outros. No entanto, a Igreja não tem autoridade para relativizar as verdades reveladas sobre a unidade do matrimónio (monogamia), sobre a sua indissolubilidade e a sua fecundidade (aceitação dos filhos como dom de Deus). Uma boa pastoral se assenta numa boa dogmática, porque só uma boa árvore com raízes sãs produz também bons frutos.
Dom Víctor Manuel Fernández declarou que “em muitas questões sou muito mais progressista que o Papa Francisco”. Como Prefeito Emérito da Congregação para a Doutrina da Fé, que conselho daria ao Arcebispo Fernández para que possa proteger com segurança as doutrinas da fé?
Na América Latina, a Igreja perdeu metade de seus membros. Na Alemanha sinodal, mais de 500.000 católicos renunciaram publicamente à sua comunhão com a Igreja somente em 2022. Por toda parte, os seminários estão vazios, os mosteiros estão fechando e o processo de descristianização das Américas e da Europa está sendo conduzido de maneira sofisticada e violenta por elites anticlericais.
Só um louco pode falar de uma primavera da Igreja e de um novo Pentecostes. Os louvores da imprensa convencional para os reformadores progressistas ainda não se traduziram em uma virada das pessoas para a fé em Jesus Cristo. Porque é somente no Filho do Deus vivo que se podem repor sua esperança de viver e de morrer.
Ainda pensar nas velhas categorias teórico-culturais de “progressistas/liberais e conservadores” ou classificar os crentes numa escala política da “direita à esquerda”, é penalmente ingênuo.
O que importa não é onde nos posicionamos no espectro ideológico, mas se "a Deus que revela [nós prestamos] 'a obediência da fé' [...] e [nós] prestamos voluntário assentimento à sua revelação " (Constituição Dei Verbum, 5). Não nos orientamos aos homens e a suas ideologias, mas ao Filho de Deus, o único que pode dizer de si mesmo: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14, 6).
Não é certo que meu conselho seja desejado pelos destinatários em questão. No que diz respeito à doutrina da Igreja sobre a fé verdadeira e salvífica, e ao que o prefeito e seu Dicastério estão obrigados a fazer à luz do magistério universal do Romano Pontífice, preferimos deixar que sejam os Padres do Concílio Vaticano II a dizer:
"Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá ‘a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade’. Para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons" (Constituição Dei Verbum, 5).
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Reação à nova nomeação do Papa Francisco do prefeito da Doutrina da Fé. Entrevista com card. Gerhard Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU